Não pediu o Céu, só quis ser lembrado

Davilson Silva-

Em vista de tantos diferentes registros, dá pra confiar em todas as narrativas evangélicas como autênticas?

Jesus carregando a cruz, a crucificação e a deposição, obra do pintor Bowes Virgo inter Virgines (1480/1500)

No Evangelho de Lucas, capítulo 23, do versículo 39 ao 42, temos o seguinte trecho:

 39 Um dos malfeitores crucificados blasfemava contra ele, dizendo: Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós também.

40 Respondendo-lhe, porém, o outro o repreendeu, dizendo: Nem ao menos temes a Deus, estando sob igual sentença?

41 Nós, na verdade, com justiça, porque recebemos o castigo que os nossos atos merecem; mas este nenhum mal fez.

42 E acrescentou:  Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu reino. Jesus lhe respondeu: Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso.

Levada a efeito a crucificação de Jesus, cumpriu-se também a de dois homens: um à direita e outro à Sua esquerda. Lucas, ao referir-se a eles, denominou-os “os dois malfeitores”; Mateus chamou-os de “dois ladrões” (Mt. 27:38); Marcos narra o mesmo episódio e cita-os: “os que com ele foram crucificados” e “o insultavam” (Mc. 16:32); João, por sua vez, referiu-se a “outros dois, um de cada lado e Jesus no meio” (Jo. 19:18), nada mais referindo ao assunto.

Veja só: Marcos disse que ambos “dirigiam insultos a Jesus”. Na versão de Mateus, no já citado capítulo, versículo 39, lê-se: “os que iam passando, blasfemavam dele [de Jesus], meneando a cabeça, dizendo: – ‘Ó tu que destróis o santuário e em três dias o reedificas! Salva-te a ti mesmo...’”.

A título de pinçamento, a respeito desses dois personagens, os ladrões, em nenhum outro capítulo da Bíblia há qualquer outra referência. Pelo menos, em nossa “edição revisada e atualizada” de exemplar de Bíblia, não existe, e tudo permanece consoante citações acima entre aspas. Vale dizer que um deles foi canonizado por “bom ladrão”, de nome São Dimas, tendo o outro o nome de Gestas que, é claro, ficou com fama de “mau ladrão”.

A Santa Cruz

E a pretexto de ilustrar ainda mais, abordemos o cumprimento de pena de morte na cruz. Pesquisadores de línguas semíticas, especialistas em grego e hebraico e em tradução bíblica dizem que esse objeto terrível de tortura e morte “santificado”, portanto, reverenciado e ostentado por muitos, em verdade, era feito de uma árvore de pequeno porte, a “oliveira palestinense”. A pessoa não ficava suspensa em um madeiro alto como apresentam Cristo crucificado em filmes, em crucifixos pequenos e grandes nos altares ou exibidos no pescoço de uns, de outros, ou em telas e gravuras de renomados artistas, haja vista uma obra do século 17, de El Grecco, A Crucificação.

Dá pra confiar?!

Em vista de tantos diferentes registros, dá pra confiar em todas as narrativas evangélicas como autênticas? Não, não dá! Por exemplo: não dá para conciliar o malfeitor que blasfemava e o outro que o repreendia em defesa de Jesus, da narrativa de Lucas, com os que com ele foram crucificados e o insultavam, da narrativa de Marcos; com onde crucificaram ele e mais outros dois, um de cada lado e Jesus no meio, da narrativa d e João; tampouco, com os que passavam, diziam blasfêmias, segundo a narrativa de Mateus, tradução de A Bíblia Sagrada, de 1960, “revista e revisada” por João Ferreira de Almeida.

Perguntemos também: Jesus teria dito o que disse? O relato de Lucas, no cap. 23, nos incita a gerar também mais esta questão... Ora, Lucas não era judeu nem viveu no mesmo tempo que Jesus. Tudo bem! Qualquer escritor pode perfeitamente escrever sobre a vida de uma pessoa sem conhecê-la, tal como no caso de Lucas em sua “acurada investigação de tudo desde sua origem” (Lc.1:1-3). Considerado seguidor da segunda geração, pelo menos o evangelista teve a boa-fé, a lisura de declarar ter “ouvido dos que lhe transmitiram, desde o princípio, o testemunho” (Lc.1:3), no prefácio do seu evangelho escrito no ano 80.

Por outro lado...

Contradições à parte, o registro do evangelista em foco não deixa de ser uma das mais lindas e comoventes matérias do Evangelho. Trata-se essa passagem do perdão irrestrito, a mais sublime das virtudes e a mais agradável a Deus, segundo o que os Espíritos ditaram a Allan Kardec. Perdão, segundo a Doutrina Espírita, é caridade moral, ápice e síntese de toda a doutrina do Mestre Nazareno, um dos principais motivos de sua vinda a este mundo.

Ao sentir a pureza e a resignação de Jesus, admitamos, quem sabe, se o malfeitor não tenha mesmo entendido a tamanha injustiça dos que condenaram o Nazareno? No entanto, se Jesus prometera algo, não foi a entrada do malfeitor no “reino dEle”; por sinal, ele nem pediu isso; recordemos o “bom ladrão” pedindo apenas para ser lembrado...

Deus, segundo o Espiritismo, sempre perdoa. O Deus dos espíritas não condena o descrente nem o mau, o ingrato, o injusto; mas deseja a sua regeneração, ou salvação moral de sua vida, e isto não se consegue falando da boca pra fora. A primeira providência do remorso é o arrependimento sincero comprovado na mudança de conduta.

Não acredite em arrependidos que não confirmem a dor do remorso pela ação regenerante do reparo, meu prezado leitor ou minha prezada leitora! O perdão divino não transige com homenagens idólatras, com inércia irresponsável, enfim, com as trevas, daí, os sofrimentos expiatórios pelos danos causados à sociedade, ao próximo, aos mais próximos, tomados por “castigos divinos”. Deus não castiga, e o que há são corrigendas que aperfeiçoam, e só através delas é que conquistaremos os planos mais altos da espiritualidade.

Ovelha perdida

Quem poderá ignorar aquela bendita parábola do cap. 18, vers. 12 a 14, segundo Mateus, e em Lucas, 15, vers. 3 a 7, a da “ovelha perdida”? Nela, aí sim, está claro e de acordo com o pensamento inteligente e legítimo de Jesus, ao referir-se ao amor de Deus pelos filhos descaminhados:

Qual, dentre vós, é o homem que, possuindo cem ovelhas e perdendo uma delas, não deixa no deserto as noventa e nove e vai em busca da que se perdeu, até encontrá-la? Achando-a, põe-na sobre os ombros, cheio de júbilo (...). Digo-vos que assim haverá maior júbilo no céu por um pecador que se arrepende, do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento.

Ainda assim, à mencionada “promessa” de Jesus, em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso, muitos se apegam. A fim de sustentarem a ideia da “salvação pela fé”, mantêm o dogma dos sofrimentos eternos, negam a lógica da preexistência da Alma, a lei de causa e efeito e, por conseguinte, a de reencarnação, o que deturpa e anula os verdadeiros atributos do Altíssimo.

Conclusão

Se Jesus prometeu mesmo o paraíso, segundo relato de Lucas, sequer Ele daria a entender que os antecedentes criminais e todos os defeitos do malfeitor estariam zerados, apesar daquelas comoventes palavras. Sim! Não foi o próprio Jesus que disse ter vindo ao mundo para cumprir a Lei e os profetas, e não para descumpri-las?

Que existem interpolações dos que traduzem, revisam e atualizam a Bíblia Sagrada, ah!, isso existe! Uma coisa é certa: o Jesus que os espíritas sinceros conhecem, mais que isto, compreendem, por isso O amam, jamais diria ou faria algo contrário à Lei de Causa e Efeito, lei de Deus. Se nessa passagem do capítulo 23, versículo 43, aconteceu tal como conta Lucas, o bom senso nos indica que, certamente, Jesus teria respondido de outro jeito ao malfeitor: Em verdade te digo hoje: estarás comigo no paraíso. Em vista de tantos diferentes registros, dá pra confiar em todas as narrativas evangélicas como autênticas?

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